Som - Um meio além do ásana e do pranayama

O primeiro capítulo dos Sutras de Patanjali apresenta, no sutra I-23, o conceito de "Entrega de si mesmo a Deus" ou Isvara-pranidhana. Nesta palestra, feita pelo professor Desikachar, ele aborda esse tema e nos fala sobre a importância e o poder do som na prática de yoga. 

Nota do editor:
Essa palestra foi ministrada por Desikachar no Seminário Viniyoga América na Colgate University, em agosto de 1987.

Desikachar
Nós abordamos brevemente asana e pranayama nestas palestras sobre os diferentes componentes da prática de yoga. Gostaria que examinássemos a questão: existe algo mais além de asana e pranayama?

Essa manhã eu estava recitando alguns versos em sânscrito nos quais os grandes mestres dizem que nesse período da evolução do mundo, conhecido como kaliyuga, as disciplinas rígidas que devem acompanhar a Yoga não são possíveis. A prática vigorosa de asana com bhandas e mudras, sentado em uma boa postura, com longa retenção de respiração após a inspiração e expiração – nada disso é possível nos tempos de hoje. Então, eles dizem que temos que encontrar outros meios.

Nesse contexto, o que se entende por yoga? Para os antigos, o yoga não é apenas ginástica física ou respiratória. Yoga é fazer algo com a pessoa por inteiro para que a mente, em geral, sem foco, transforme-se numa mente que pode estar focada em alguma coisa significativa. O objeto de foco poderia ser Deus, ou a tentativa de dominar a si mesmo, ou alguma outra ideia importante.


Patanjali define a yoga como a capacidade de direcionar a mente para algo, mesmo que seja complexo, e manter essa direção por um período de tempo, até que algo sobre esse objeto seja claramente compreendido. Assim yoga é a tentativa consciente de focar a mente em uma direção desejada. Isso requer certas práticas e disciplinas porque temos que reverter muitas coisas que nos aconteceram no passado.

Os antigos pensavam que era preciso encontrar um sistema mais simples para mudar a mente - algo que não exigisse todos os rigores da disciplina com o corpo, respiração, hábitos alimentares, etc. É por isso que Manu, nosso antepassado, disse que, na kaliyuga, a maneira prática de mudar uma mente perturbada é sankirtana (glorificar a Deus). Manu diz que devemos continuar a recitar o nome de Deus continuadamente. Ele diz para não nos preocuparmos com disciplinas; que isso virá mais tarde. Basta começar recitando o nome de Deus.     
                                                                                                     



A mente tem tantos tipos diferentes de atividades, 
algumas boas e outras ruins. 
É possível mudar essa mente por meio da prática.





Quero que você examine essa questão. Em yoga, existe apoio à proposta de que mesmo algo feito mecanicamente pode dar bons resultados? Consideremos essa questão com o uso do Yoga Sutra de Patanjali. No primeiro capítulo, são propostos diferentes métodos. A primeira proposta de Patanjali não é o asana, não é o pranayama, mas sim o que ele chama Isvara pranidhãna.
Diz-se que Yoga é isso: A mente tem tantos tipos diferentes de atividades, algumas boas e outras ruins. É possível mudar essa mente por meio da prática. Ele não define prática. Ele simplesmente diz abhyãsa (prática).

É como eu ir a um médico, e o médico me dar uma folha de papel, dizendo: "compre este medicamento." Abro a folha de papel e não há nada, apenas um nome. Então Patanjali simplesmente diz: "prática", mas ele não diz que prática é essa. E então ele diz, é claro, que algumas pessoas nascem com sorte. Eles não têm que trabalhar duro; já está neles. E ele diz que é preciso muito entusiasmo. Se você tem o entusiasmo, a força motriz, você terá sucesso. Mas o que fazer?


Quando você vai a um médico, ele fala, examina e testa o joelho, testa o pescoço, etc. Mas o que realmente importa é aquela folha de papel que diz que medicação tomar, quando tomar, e assim por diante. Então, esperamos por isso. Nós queremos ver isso.

Nossa folha de papel começa com o que Patanjali chama japa. Japa é a recitação continuada de alguma força simbólica mais elevada. Para os hindus é Om, para os muçulmanos é Allah. O que quer que seja você não deve permanecer apático em relação a ele; você deve querer fazê-lo.

Om: som universal
Assim, o primeiro conselho que ele dá é a recitação do Om para os hindus, ou algo parecido para outras pessoas, recitado lentamente, de maneira apropriada, várias vezes. De alguma forma as coisas sofrerão mudança. Podemos acreditar nisso?

Vou lhe dar um exemplo. Na segunda-feira, o pobre Martin estava no meio de uma confusão. Ele veio aqui às 8h45, e queria fazer vários anúncios. Ele deve ter ficado cansado também com tanto o que fazer. Eu estava lá sentado assistindo, e pensei: como vou mudar essa mente desorganizada para uma organizada? Eu disse para mim mesmo, é muito simples. Vou começar com alguns cânticos. Você se lembra, nós fizemos alguns cantos, e então nós ficamos prontos para a aula.

Como isso acontece? Eu sempre fiquei perplexo com isso. Quando meu pai abençoa um casamento, ele sempre faz alguns cânticos. No momento em que começa a cantar, toda a atmosfera da sala muda. Eu nunca entendi como isso acontece, mas acontece. Aconteceu segunda-feira. Havia apenas quatorze mantras que diziam simplesmente: 'vamos ouvir coisas boas com o ouvido'. Provavelmente apenas um ou dois de vocês entenderam o que o mantra queria dizer, mas com a letra e com certas notas, houve uma mudança na sala. Isso acontece por causa da força do som. Se for o Om ou algo mais que fala sobre uma força superior, isso tem poder.

De fato, essa é a base da nossa gramática sânscrita. A gramática sânscrita é chamada sabdanusãsana. Ou seja, você começa a cantar; você percebe o que o som representa. Você não se preocupa com o significado, você apenas vai recitando o som. Sabda significa som - Om ou Nãrãyana, ou Jesus Cristo - seja o que for. Você apenas continua repetindo, em algum momento, compreenderá o que esse som representa. Muitas vezes, as pessoas são atraídas para a realidade por meio do som. 

Então, com base nisso, nossos povos antigos propuseram uma técnica muito simples. Ou seja, se você tem alguma entidade que você gosta, talvez o seu professor ou o seu Deus, ou quem quer que seja, apenas tente encontrar uma maneira de dizê-lo. Assim, pelo menos, sua mente ficará mais tranquila, e talvez um dia você entre em contato com esse objeto.

Há sempre um elo entre sabda -  o som - e o fato. Você pode conhecê-lo ou você pode não conhecê-lo. Muitas vezes, os princípios que esses sons representam, como Deus, são desconhecidos para nós. Onde podemos mostrar Deus? Mas podemos falar sobre isso. Certos sons representam Deus. Para os hindus, nenhum outro som é mais aceitável para Deus do que o Om.

Então recitar esses sons deve levar-nos a um plano mais elevado. Isso é o que o canto deve fazer. De alguma forma, somos elevados. E quando digo isso, não estou promovendo nenhuma religião. É simplesmente um fato que o som tem um efeito sobre a mente.


Vou contar-lhes uma história. Há cerca de quinze anos, em nosso estado de Tamil Nadu, tivemos o mesmo partido político que estava dirigindo toda a Índia. Então apareceram alguns oradores políticos muito bons de outro partido. Sua única qualificação era que conheciam Tamil e tinham uma maneira especial de falar. De alguma forma, eles mudavam sua voz para que ganhasse uma qualidade que você gostasse de ouvir. Alguns dizem que foi licor, mas talvez tenha sido prática também. Em três anos, o partido político no poder foi derrubado e substituído por um partido sem qualificações, a não ser aquela que quando eles falavam, você queria ouvir. Sua força não era dinheiro, nem força política, mas treinamento da voz.
Japa mala

Então, seja o nosso japa, o Om, a experiência de cantar que tivemos na segunda-feira, ou este exemplo do partido político que varreu as pesquisas tão rápido em poucos anos, isto é o poder do som e o significado do som. Patanjali deve ter pensado nisso quando propôs:, "Ok, não se preocupe com asana ou pranayama, basta recitar um bom som, alto, de uma maneira agradável, e você verá o que acontece com a mente." Ele diz que isso o levará de volta para si mesmo.

Um dos requisitos mais importantes no yoga é compreender a si mesmo. Devemos, finalmente, olhar para nós mesmos e cantar nos ajuda a fazer isso. No mínimo, começaremos a ver que "ontem a minha voz foi tão boa, hoje não é tão boa ... Ontem eu poderia recitar este Om cinco vezes em uma exalação. Hoje eu preciso respirar no meio. Falta de ar. Talvez eu não esteja bem, talvez haja um distúrbio. "

Então cantar irá levá-lo de volta para si mesmo, e você vai começar a ver-se de uma forma que você não viu antes. É por isso que Patanjali diz: tatah pratyakcetanãdhigamah[1]. Através deste cântico, você aparece na sua frente. Então você começa a ver. Claro que no começo nós vemos muito pouco. À medida que desenvolvemos essa técnica, vemos mais e mais.

Então esta é a primeira das técnicas - não asana e nem pranayama - que Patanjali nos ofereceu - o uso do som como um meio para entender e retificar a mente, para nos entendermos. É por isso que cantar é muito popular na Índia, e devo dizer, está se tornando popular em outros lugares também.

Posso também antecipar que se tornará mais difícil praticar a disciplina de asana e pranayama. Desde que o corpo não é o mesmo hoje como era quando os povos antigos projetaram o asana, é melhor ter algumas escolhas. Talvez Patanjali soubesse disso.

Pergunta:                                                       
Você disse que o som o trará de volta para si mesmo. Será que isso aconteceria para que você entrasse nesse eu superior?
Sim, essa é exatamente a idéia. É o começo de um processo que pode ir muito longe. A primeira coisa de que estou consciente é o meu corpo e como ele funciona no estado de vigília Mas podemos ir mais longe do que isso. É uma questão de como somos disciplinados. Quanto mais para dentro formos, mais saberemos, até que finalmente voltemos àquela consciência que é muito profunda. 

A palavra em sânscrito para isto é sat-cit-ananda A tradução aproximada da palavra, cit é consciência. Na Índia, se descrevêssemos as características básicas de Deus, a primeira palavra que usaríamos seria cit. Ele não é como uma pedra. Está sempre consciente. Sat significa que ele existe. Enfatiza que ele é uma entidade permanente. E então Ananda, isto é, não há tristeza.

Acreditamos que o que existe dentro de nós não é simplesmente uma consciência humana, mas a Consciência Divina. É um dos ensinamentos importantes: que Deus está tanto dentro de nós quanto fora, em todos os lugares. Pegue essa palavra, Om. O O é muito longo. Om não representa a mim ou a minha mente. Representa algo além. Representa Deus. Então, quando eu produzir esse som Om com sentimento, isso tem que me levar de volta ao que representa. Mas isso leva tempo. Temos que ir nessa direção de forma gradual.

De acordo com nossos ensinamentos, a compreensão das coisas mais elevadas acontece passo a passo. Se você ler os Upanishads, por exemplo, eles dizem que o primeiro entendimento é que temos um corpo e este corpo requer alimento. Um pouco mais tarde, talvez saibamos algo sobre a mente. Somente depois, quando tivermos entendido alguma coisa sobre a mente, poderemos ir mais fundo do que isso. Então, é um caminho progressivo. Mas pode ir tão longe quanto a cit original, isto é, Deus ele mesmo.

A Carta Viniyoga - Novembro de 1988 Número 5



[1] Sutra I-29 – Da repetição do som OM resulta o desaparecimento dos obstáculos e a orientação da consciência para o interior. 

Traduzido do texto  publicado no site Yoga Studies.

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